quarta-feira, 6 de abril de 2011

Vazio urbano*

Era uma manhã de segunda-feira nublada em São Paulo. O verão tinha acabado junto com o fim de semana. Os próximos dias eram de trabalho e tentativa de resolução de pequenos problemas domésticos, financeiros e de saúde. A previsão era, portanto, de novos dias nublados.

Mal tivera tempo de tomar banho. Saí de casa sem tomar café, sem comer algo... Ainda nem tinha acordado direito e o humor não era um dos melhores. Minha tarefa era ir até uma esquina de Higienópolis para colher a assinatura de uma amiga e pegar um comprovante de seu endereço – parte das burocracias para abrir uma conta bancária.

Exercia a penosa arte de esperar. Meu tornozelo, torcido na semana anterior, lembrava que ainda não podia ficar muito tempo em pé. Tentava me distrair. Olhava o taxista que fazia uma conversão errada; a moça bonita e apressada que, por segundos, ficou descalça ao descuidar do sapato de salto alto; o gay que fazia caminhada; o executivo desalinhado; e, enfim, o vendedor de frutas, que dividia aquela esquina da Angélica com a Novo Horizonte comigo.

Naqueles 20 minutos só um rapaz ‘sem rosto’ havia comprado um de seus produtos. – o abacaxi é R$ 3 –, disse referindo-se as fatias de frutas comercializadas num saco plástico. Eu não dava muita importância para a cena. Mas seria com aquele vendedor de frutas que compartilharia o testemunho de uma situação inusitada.

Perdia-me em pensamentos confusos e abstratos, quando ouvi em alto e bom som:
– Bom dia!
As palavras tinham sido disparadas por uma senhora gorda, na casa dos 45 anos, que usava saias e tinha jeito materno. Não era um ‘bom dia’ qualquer. Ele vinha de uma voz simpática, num tom sincero e arrancavam-me dos meus devaneios internos e me chamavam para uma realidade mais doce do que eu pintava.

Fiquei atônito ao despertar do meu fluxo interno e ver que o ‘bom dia’ não fora respondido nem pelo vendedor de frutas, nem por mim. O cumprimento tinha sido dirigido a ele ou a mim? Não importava muito, na medida em que não foi respondido. Mesmo sem ter devolvido palavras cordiais, o dia bom desejado pela mulher já surtia efeito em meu ser. Meu cérebro que, até então, reproduzia uma sensação de ‘desprazer’ recebia agora ordens para gerar substâncias que provocassem leveza de espírito.

O dia, talvez, pudesse mesmo ser bom. Mas numa terra que se esconde atrás do concreto é melhor duvidar do determinado. Afinal, a cidade sempre te lembra que nem o céu pode ajudar a decifrar o que vai acontecer...

...Num descuido da pressa, na corrida para alcançar um ônibus, um homem trompa em uma senhora. Ele percebe, mas continua a correr. Ela faz expressão de espanto e num espasmo tomba. Esparrama seu corpo miúdo pelo chão. No ponto de ônibus, todos vêem, mas fingem não perceber. – Que ônibus é aquele lá atrás? – indaga uma moça, preocupada se vai conseguir chegar no horário no trabalho.

O ônibus, que eu peguei para voltar para casa e do qual observava a cena pela janela, arranca em poucos segundos. Novamente não tenho possibilidade de reagir. Penso em descer no próximo ponto para perguntar a senhora se “(estava) tudo bem?”, mas do vidro traseiro a vi levantando.

Jamais conseguiria alcançá-la. O vestido branco deve ter sujado e amarrotado. Recomposta, ela pegaria o próximo ônibus e teria um longo e difícil dia, com refluxos de lembrança daquela cena.

Quando resolvi passar a catraca, catei minhas últimas três moedas de R$ 1 do bolso e entreguei-as à cobradora. A mulher me encarou e me disse: “Bom dia”. Ela só podia estar de brincadeira. Sorri, abaixei a cabeça, mas dessa vez consegui responder: “bom dia!“, antes de ser enxotado da catraca pelo homem dentro do terno.

Sentei e em poucos minutos estava de volta aos meus devaneios. Pensava agora que essa senhora com cara de sofrida talvez tenha sido aquela moça que um dia ignorou as saudações de Drummond, mas que agora passava os dias a distribuir “bom dias” à multidão... (sem matas onde possam ecoar).

[21 a 30 de março de 2011]

*Crônica de uma vida real e imaginada: cada um dos personagens tem um pouco de minhas ações.

Nota do blog: Sei que faz tempo que não posto aqui. E que talvez demore outro tanto para postar. Culpa da falta de inspiração e talvez de uma fuga de ‘reflexões’. Nada que abale a vida de ninguém e que causa falta maior para mim mesmo.

Sem aspas por hoje.