Terra
branca e rachada, plantas secas, rios que só estão presentes em
nomes de placas. Esse é o cenário de Independência, município, a
309 quilômetros de Fortaleza, no Ceará. Mesmo para quem mora no
estado onde fica o Pantanal, a maior área alagada do mundo, a imagem
soa familiar, já que o sertão nordestino é alvo de diversas
reportagens que mostram a realidade da região.
Não
dá para negar: o lugar que utiliza galhos secos como cercas tem um
clima de tristeza. A melancolia, no entanto, é logo espantada por um
coral de crianças que entoam uma música e parecem querer mostrar
outras possibilidades do semi-árido brasileiro.
-
Seja bem vindo a casa é a sua, fique a vontade - cantam os alunos da
Escola Família Agrícola Dom Fragoso, em ritmo de ciranda, com
sotaque local e orgulho nos olhos.
Mas
em um cenário como esse, de que elas se orgulham? Elas logo se
apressam em mostrar o motivo. No auge da seca, que já dura mais de
sete meses, o que é comum todos os anos na região, os 72 alunos da
escola conseguem cultivar frutas, verduras, hortaliças e ainda criar
porcos, cabritos e galinhas. O segredo é a perseverança de um povo
guerreiro que buscou várias alternativas para conseguir água em um
local em que choveu apenas durante uma semana em 2007.
-
Fazemos uma base embaixo do solo por meio de um buraco profundo,
colocamos lona para proteger e represamos a água encontrada –
relata Adão (foto).
O
garoto de 17 anos lembra muito Elieldo, de 28. A semelhança não é
física, mas pode ser percebida a olhos nus. Os dois moram na mesma
região do país, a mais de três mil quilômetros de Campo Grande
(MS), mas não se conhecem. Ambos são líderes natos e residem no
interior do interior do Brasil e lá pretendem ficar.
Adão
Sérvulo é aluno da 7ª série da Escola Família Agrícola Dom
Fragoso, localizada na área rural do município de Independência.
Já Elieldo Gonçalves é um dos diretores da Associação
Comunitária de Pequenos Produtores de Várzea do Toco, comunidade
que abriga 57 famílias e fica no outro extremo do município de
Independência.
Os
dois são personagens de uma história que se constrói no dia-a-dia,
em um local em que o sol está presente em todos os lugares,
inclusive nas pessoas: no cheiro, no tom e na textura da pele. Eles
usam calça jeans e camisa, vestem o rótulo de sertanejo e têm
brilho no olhar e alegria na voz. Ambos nasceram com o pé no chão,
a mão na enxada, o sol na cabeça e muita determinação.
Elieldo
é conhecido em sua comunidade como “chave”, afinal tudo o que os
outros moradores - mesmos os mais velhos - vão fazer consultam-no.
Elieldo é o responsável por ativar a mandala, tecnologia utilizada
para irrigar a água para as hortaliças.
É
ele também quem liga a luz e faz as contas da associação. É uma
pessoa que vive lá, longe dos olhos dos governantes, da multidão, e
constrói uma vida tentando ser justo e honesto, com admiração ao
lugar em que mora. – Já trabalhei como garçom em Fortaleza, mas
gosto daqui. É onde sou feliz e não quero sair. Vamos aprendendo as
técnicas de plantar no semi-árido e repassando para os outros.
Na
casa simples de Elieldo, assim como na maior parte das residências
de Várzea do Toco, há uma antena parabólica. Ele, que é solteiro
e mora com os pais, tem na sala aparelho de som, televisão, DVD,
entre outros aparelhos eletroeletrônicos adquiridos a partir de
2004, quando chegou a luz na comunidade.
O
porta-CDs abriga clássicos do forró local como “Limão com Mel”
e ícones da música sertaneja como “João Mineiro e Marciano”. A
família Gonçalves possui também sacos de alho, panelas grandes e
fogão de barro na cozinha. No quarto, além da cama e do
guarda-roupa há um ventilador e um violão, que o sertanejo arrisca
tocar para os amigos nas noites enluaradas de Independência.
Tudo
que acontece na comunidade é decidido em conjunto. A partir da união
dos moradores da Várzea do Toco, que fundaram a associação há 12
anos, foi possível conseguir mais do que a luz, ou o que qualquer
outro programa assistencial de governo pode dar a uma pessoa. Eles
conquistaram a dignidade.
–
Passamos a produzir na
horta comunitária o que comemos. Vendemos o excedente e dividimos o
dinheiro. Fizemos a convivência com o semi-árido se tornar
possível. Valorizamos o lugar onde vivemos e temos orgulho daqui –
diz a professora Ana Neri, 27, moradora da Várzea do Toco e
secretária da associação de moradores.
Driblando
o tempo
Tanto
na escola, onde Adão passa 15 dias seguidos, quanto no Assentamento
Pintada, onde mora com os pais, e passa os outros 15 dias do seu mês,
são utilizadas cisternas para captar a chuva. Por meio de calhas que
recolhem a água que cai sobre o telhado das casas elas armazenam até
seis litros. No assentamento onde Adão mora, são 31 reservatórios,
que fazem parte do programa “Um Milhão de Cisternas Rurais”, da
Articulação no Semi-Árido Brasileiro (Asa), movimento que reúne
750 entidades, sindicatos e associações nos nove estados da região
Nordeste, além de áreas de Minas Gerais e do Espírito Santo, que
fazem parte do semi-árido brasileiro.
Ao
todo, foram construídas pelo programa 220 mil cisternas em 1.031
municípios da região, beneficiando 1 milhão de pessoas. O objetivo
do projeto é chegar a 1 milhão de cisternas, atingindo 5 milhões
de pessoas. - A intenção é conviver com a região por meio de
organização política e de produção, afinal, os açudes são
rasos e vão evaporando ao longo do ano. Eles também não permitem a
distribuição de água, que é fundamental para a segurança
alimentar. Com a cisterna permitimos a democratização desse bem -
afirma o articulador da Asa, Lourival Almeida.
Na
Escola Família Agrícola Dom Fragoso, a cisterna está vazia e
aguarda o “inverno” no sertão, período de chuva, que com sorte
vai de janeiro a maio. Enquanto, a cisterna está vazia, a água é
captada de um açude, que presencia diariamente um belo espetáculo
de pôr-do-sol. Hora em que as crianças descansam das atividades
escolares e jogam uma pelada.
Mas
aqui, os verdadeiros gols são feitos em áreas experimentais em que
cada aluno produz uma cultura agrícola na comunidade onde mora e
ajuda a colocar comida na mesa de casa. - Na minha casa não fazia
nada, começamos a produzir verduras depois que vim para escola.
Agora cada dia minha mãe inventa uma comida diferente – diz, com
sorriso tímido, Jaciara Pereira Sousa, 12, aluna do 7º ano da
escola.
As
lições presentes nos livros didáticos, nas paredes, na lida do
campo, na ideologia e no hino da escola, são decoradas pelos alunos
e estão na ponta da língua: “A Escola é fruto da luta do povo
que quer ver um mundo novo, que ninguém tenha mais fome. Hoje uma
conquista nossa do trabalhador da roça que quer ser cidadão”.
(30-12-2007)